Além dos benefícios já conhecidos da alimentação crua, como melhor digestibilidade e assimilação dos nutrientes, nos últimos anos pesquisas têm se preocupado em demonstrar a real influência da dieta crua na composição da população de microrganismos que habitam o trato gastrointestinal (TGI). Apesar de os resultados não poderem ser percebidos a olho nu, os estudos têm apontado que esses agentes promovem ganhos expressivos para a saúde intestinal e consequentemente para todo o corpo.
O microbioma é uma complexa comunidade de trilhões de microrganismos que residem no TGI de seus hospedeiros e, juntamente aos seus metabólitos, tem um papel significativo na manutenção estrutural e funcional da integridade do intestino, na digestão e na absorção de nutrientes, na regulação da energia e do sistema imune, na produção de vitaminas e de neurotransmissores, onde se destaca a produção de 90% da serotonina de todo corpo. Na última década houve aumento do interesse da comunidade científica em realizar maiores investigações acerca da interação entre microbioma intestinal, dieta e a função intestinal em razão da associação entre alterações do sistema gastrointestinal e diversas doenças dos animais de companhia.
O microbioma fecal é reconhecidamente afetado por diversos fatores. A sua diversidade e composição são fortemente influenciadas pelo estado de saúde do animal, assim como pela composição da dieta. Além de os tipos de fibras alimentares impactarem diretamente nos microrganimos, diferentes proporções entre os macronutrientes afetam a qualidade e a quantidade microbiana fecal. Porém, apenas uma mudança significativa na composição da dieta permitirá alcançar mudanças expressivas nesse ecossistema.
A microbiota intestinal tem o poder de alterar a transcrição de genes, com profundas implicações na saúde. Um microbioma em disbiose, ou seja, em desequilíbrio qualitativo e/ou quantitativo de microrganismos, está associado não só com enfermidades do TGI, mas com a obesidade, doença cardiovascular e outros diversos problemas metabólicos dos demais sistemas orgânicos. O intestino é responsável por cerca de 85% da imunidade de um indivíduo (Pilla e Suchodolski, 2020).
ALIMENTOS CRUS X ALIMENTOS EXTRUSADOS E O MICROBIOMA
As propriedades nutricionais das carnes cruas são superiores às de alimentos extrusados, contendo nutrientes bem mais disponíveis ao aproveitamento pelo corpo. Existe clara correlação entre famílias microbianas e a digestibilidade de proteínas e gorduras. Alimentos comerciais são aquecidos durante o processo de fabricação para que tenham maior tempo de conservação e para eliminar microrganismos, o que afeta de forma importante a biodisponibilidade de seus nutrientes. Além disso, para compensar as perdas do aquecimento, vitaminas, aminoácidos e outros nutrientes sintéticos são adicionados ao alimento seco, mas estes podem não ser digeridos e absorvidos da mesma forma que os encontrados naturalmente nos alimentos (Craig, 2020).
Diversos trabalhos (Li Q et al. 2017; Bermingham et al. 2018; Sandri et al. 2020) demonstraram diferenças significativas no microbioma fecal de animais alimentados com dietas cruas e ricas em proteínas e com baixo carboidrato comparados à dietas comerciais com baixo teor de proteínas e elevado carboidrato. Segundo Sandri et al. (2017), a oferta de dieta crua promoveu o crescimento mais equilibrado de populações bacterianas e mudanças positivas nas funções da microbiota saudável.
Outra problemática a respeito dos alimentos secos extrusados para alimentação de cães e gatos é a sua comprovada contaminação por micotoxinas (Gazzotti et al. 2015; Macías-Montes et al. 2019). Os metabólitos gerados por esses agentes são capazes de promover alterações importantes da permeabilidade do epitélio intestinal (leaky gut) predispondo os animais ao desenvolvimento de doenças crônico-degenerativas, como alergias, doenças hepática, cardiovascular e cognitiva (Liew e Mohd-Redzwan, 2018; Santis et al 2019).
Um estudo (Schmidt et al. 2018) comparou o microbioma fecal e a metabolômica (análise quantitativa dos metabólitos produzidos pelos microrganismos) entre cães alimentados com a dieta BARF e alimentados com dietas comerciais secas e úmidas. Os cães do grupo da dieta BARF demonstraram diferenças significativas, apresentando maior diversidade microbiana. A diversidade da microbiota intestinal está diretamente relacionada com a saúde.
Dentre os metabólitos, esse estudo observou maior presença de ácido 4-aminobutírico, o famoso GABA, neurotransmissor inibitório do SNC tão importante para relaxamento e controle de ansiedade. Além do GABA, foram observados maiores níveis de ácido glucônico nos cães alimentados com BARF, substância com considerável efeito prebiótico, contribuindo para a seleção e crescimento de microrganismos intestinais benéficos.
Dessa forma, podemos observar que as pesquisas científicas mais recentes sobre a alimentação crua e a saúde intestinal de cães e gatos estão indicando correlação positiva (Sandri et al. 2017; Bermingham et al. 2018, Wernimont et al. 2020). Alimentar os cães e gatos com dietas carnívoras que consistam em ingredientes na sua forma natural tem se tornado cada vez mais popular, com muitos tutores observando melhorias significativas na saúde de seus pets. Os dados demonstram que a adoção dessa modalidade promove o crescimento equilibrado e a diversidade de comunidades microbianas intestinais saudáveis, fator fundamental à boa resposta imunológica e ao estímulo epigenético favorável à homeostase das funções tanto físicas quanto mentais.
Dra. Samyla Albuquerque
Contato: vetnutresa@gmail.com
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Craig JM. Raw Feeding in Dogs and Cats. Companion Animal, 24:11, 2020.
Gazzotti T, et al. Occurrence of mycotoxins in extruded commercial dog food. Animal Feed Science and Technology, 2015.
Li Q, Lauber CL, Czarnecki-Maulden G, Pan Y, Hannah SS. Effects of the dietary protein and carbohydrate ratio on gut microbiomes in dogs of different body conditions. mBio 8:e01703-16, 2017.
Liew W-P-P e Mohd-Redzwan S. Mycotoxin: Its Impact on Gut Health and Microbiota. Frontiers in Cellular and Infection Microbiology, 8:60, 2018.
Macías-Montes A, Rial-Berriel C, Acosta-Dacal A, Henríquez-Hernández LA, Almeida-González M, et al. Risk assessment of the exposure to mycotoxins in dogs and cats through the consumption of commercial dry food. Science of the Total Environment, 2019.
O'Halloran C. Raw Food Diets for Companion Carnivores: an untapped panacea or a disaster waiting to happen? Companion Animal, 25:3, 2020.
Pilla R and Suchodolski JS. The Role of the Canine Gut Microbiome and Metabolome in Health and Gastrointestinal Disease. Frontiers in Veteterinary Science, 6:498, 2020.
Sandri S, Monego SD, Conte G, Sgorlon S, Stefanon B. Raw meat based diet influences faecal microbiome and end products of fermentation in healthy dogs. BMC Veterinary Research, 13:65, 2017.
Sandri M, Sgorlon S, Scarsella E, Stefanon B. Effect of different starch sources in a raw meat-based diet on fecal microbiome in dogs housed in a shelter, Animal Nutrition, 2020.
Santis B, Brera C, Mezzelani A, Soricelli S, Ciceri F, et al. Role of mycotoxins in the pathobiology of autism: A first evidence. Nutritional Neuroscience, 22:2, 132-144, 2019.
Schmidt M, Unterer S, Suchodolski JS, Honneffer JB, Guard BC, Lidbury JA, et al. The fecal microbiome and metabolome differs between dogs fed Bones and Raw Food (BARF) diets and dogs fed commercial diets. PLoS ONE 13 (8): e0201279, 2018.
Wernimont SM, Radosevich J, Jackson MI, Ephraim E, Badri DV, et al. The Effects of Nutrition on the Gastrointestinal Microbiome of Cats and Dogs: Impact on Health and Disease. Frontiers in Microbiology, 11:1266, 2020.
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